quarta-feira, 1 de abril de 2015

DULCE ROCQUE, uma homenagem



Lembranças de um passado revolucionário (transcrito do Portal ORM)



Dulce Rosa de Bacelar Rocque, 64 anos, é uma paraense de Belém, que viveu profundamente a agitação política do Brasil na época da ditadura, mais precisamente quando houve o golpe militar que derrubou João Goulart do poder, em 1964. É formada em Ciências Econômicas pela UFPA; em Economia Política pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou; em Economia e Comércio pela Alma Mater Studiorum (Universidade de Bolonha), com especialização em Programação Econômica do Território (Urbino) e em Direito Público (Bolonha). Saiu do Brasil ainda jovem para estudar em Moscou e depois viveu por 35 anos na Itália onde conheceu Carlo Cioni, com quem foi casada e teve uma filha, Anna Marilia Cioni, que hoje mora em Roma. Seu engajamento político permitiu que conhecesse grandes figuras como Luiz Carlos Prestes (líder comunista), Salomão Malina (último Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro) e Gregório Bezerra (legendário líder pernambucano do PCB). Nesta entrevista, a economista aposentada relata sua vivência política e atividades realizadas no período em que viveu na Europa.Por Iva Muniz
Troppo - Quando a senhora despertou para as atividades políticas e sociais no Brasil?
Dulce - Em 1964, quando entrei para a faculdade de Economia. Poucos dias depois do resultado do nosso vestibular, João Goulart dobrou o número de vagas nas faculdades e realizaram outro vestibular para preencherem as novas vagas.
Troppo - Como foi que a senhora exerceu sua atividade política aqui em Belém?
Dulce - O golpe de estado aconteceu no ano que entrei para a faculdade. A situação dentro da UFPa era agitadíssima e eu fiquei empolgada em descobrir que, naquele mundo político, mulher também tinha seu peso. Comecei a ser informada do que sucedia nas reuniões que aconteciam no movimento universitário, até que comecei a ser convidada a participar delas. Na faculdade de Economia o PCB era bastante forte e pessoas do partido se aproximaram de mim. Inicialmente não dei peso aos convites. Depois do golpe fui procurada mais insistentemente para fazer pequenas tarefas, como procurar saber onde estavam determinados companheiros. Como não era conhecida no movimento estudantil, era mais fácil entrar nas prisões a procura deste ou daquele 'preso político', e saber quem mais estava lá. Os ativistas da esquerda tinham desaparecido depois do golpe e ninguém sabia quem estava preso e quem estava escondido, nem em qual prisão estavam.
Troppo - E depois que a situação foi ficando mais calma o que ocorreu com o passar do tempo?
Dulce - Alguns colegas começaram a voltar às aulas. Muitos tinham perdido o emprego. A agitação anterior não existia mais, mas as reuniões, agora clandestinas, continuaram, aliás com mais assiduidade. No segundo semestre de 64 comecei a participar de algumas dessas reuniões. Começaram então a usar a minha casa como 'aparelho' e a nossa Kombi como meio de transporte. Tinha entrado com armas e bagagem no PCB. Todos tinham começado a usar nomes falsos, por isso, de nada vale elencá-los aqui.
Troppo - Como a senhora conheceu Luiz Carlos Prestes, Salomão Malina e Gregório Bezerra?
Dulce - Malina conheci em Belém, quando esteve aqui para uma reunião no dia do Círio, no final da década de 1960. Depois o revi em Moscou e mais tarde o hospedei várias vezes em minha casa na Itália. Gregório chegou em Moscou vindo do México cerca de um mês depois da troca dos presos políticos com o embaixador Elbrick. Isso em outubro/novembro de 1969. Nos víamos diariamente. Quando decidiu escrever um livro sobre sua vida, datilografei os primeiros capítulos. Prestes conheci em Moscou em 1970/71. Poucas vezes apareceu no Instituto onde estudávamos. Fui algumas vezes à sua casa. Maria, sua esposa, era muito simpática com todos e nos deixava à vontade. Com ele, porém, éramos, todos, muito formais. Ouvi-lo falar parecia estar conversando com a Historia. Contava de encontros com Ho Chi Mim, de discussões com Mão Tse Tung, de conversas com Tito e assim por diante. Magro, baixinho, a sua seriedade, sua personalidade, sua presença, me incutia respeito. Quando o revi em Bolonha, anos depois, tive a mesma sensação: o admirava.
Troppo - A senhora saiu do Brasil como exilada política?
Dulce - Não, saí para estudar na França, ou seja, isso foi o que disse a todos os amigos e parentes quando viajei para Moscou. O AI 5 tinha entrado em vigor em dezembro de 1968, a situação de quem era da esquerda tinha se tornado muito difícil, e se dissesse para alguém o rumo da minha viagem, com certeza não conseguiria chegar nem no Entroncamento, muito menos em Moscou. Mas, como consegui viver em Moscou, depois me tornaram uma exilada.
Troppo - Por que a senhora foi para a Itália?
Dulce - Em Moscou conheci um italiano e, depois de dois anos de namoro, resolvemos casar, na Itália, assim conheceria os seus parentes e depois viríamos para o Brasil. Esse era o plano. Porém, não conseguimos voltar dentro do prazo, então comecei a trabalhar denunciando a ditadura no Brasil. Com meu marido fiz um jornalzinho que distribuíamos grátis, com notícias lidas no Le Monde ou outros jornais, raríssimos, que falavam da situação daqui. Passava o dia inteiro procurando noticias em todos os jornais italianos e acabava a jornada sem nada nas mãos. A censura funcionava muito bem no Brasil. Em 1974, quando estava me preparando para voltar, recebi a noticia da prisão de alguns companheiros que tinham estudado comigo em Moscou. Sob tortura, um deles falou e assim a policia brasileira descobriu que ainda tinha alguém daquele grupo de estudantes na Itália. Eu já era membro também do Partido Comunista Italiano e recebi a 'ordem' da direção do PCI de não voltar, pois meu nome já estava em todas as portas de entrada do Brasil. Fiquei furiosa!
Troppo - Na época, como estava a situação política e social da Itália?
Dulce - A Itália fervia politicamente. Não somente greves se realizavam constantemente, mas a luta entre o PCI e a Democracia Cristã, partido católico que a governava desde o fim da 2ª. Guerra, era enorme. Admirava-me o fato de todos discutirem política abertamente em bares, ônibus, praças, em todo canto. Acompanhava meu marido nos comícios que fazia quando foi candidato a deputado pelo PCI e me admirava mais ainda com tanta liberdade. Estava vivendo a Democracia e participando também. O meu problema de consciência por não ter voltado para o Brasil com os outros companheiros me levou a utilizar tudo o que aquela democracia me permitia. Fiquei mais audaz. Comecei a me apresentar em todos os festivais do L’Unitá (jornal do PCI) com uma mesinha e uma carta escrita em várias línguas endereçada aos ministros da ditadura e ao presidente do Brasil. Recolhia assinaturas e o dinheiro para o selo. Por segurança, não as enviava diretamente da cidade onde morava, usava os motoristas da firma de transportes internacionais onde trabalhava para colocá-las no correio em todas as cidades italianas por onde passavam.
Troppo - Como os italianos reagiam a esta sua ação?
Dulce - No primeiro ano que fiz isso recolhi milhares e milhares de assinaturas. Os italianos eram muito solidários e curiosos: todos queriam notícias da situação brasileira, que nem eu. Porém, era muito difícil. Malina me atualizava da situação naquelas vezes que ficava hospedado em casa, rumo a alguma reunião do PCB. Outros companheiros brasileiros que eu hospedava também me contavam algo. Ter notícias pela igreja era mais fácil quando chegava algum documento dos padres brasileiros denunciando fatos graves. Um padre italiano foi expulso do interior do Pará e foi parar em Piacenza. Descobriu-me e, como ele também morria de saudades, começou a freqüentar a minha casa e me contar coisas que aconteciam e que os jornais não falavam. Isso aumentou a minha raiva.
Troppo - O que você fez ?
Dulce - Aumentei as denuncias contra a ditadura. Não tinha mais uma mesinha, mas um estande nos festivais do L’Unitá. Foi num deles, em Milão, que conheci o primeiro brasileiro naquele ambiente de esquerda. O cara apresentou-se como Francisco e demonstrou ter muitas informações sobre o que estava acontecendo no Brasil. Ele disse ter ido para a Itália trabalhar pro (Carlos) Marighella (guerrilheiro brasileiro) e que não tinha podido voltar. Fiquei em contacto com o Francisco e, depois de um ano, ele pediu para entrar no PCB. Começamos a trabalhar juntos contra a ditadura e acabou trazendo outros três do grupo do Marighella para a nossa luta.
Troppo - Nos 35 anos que passou na Itália, o que a senhora realizou de relevante naquele país?
Dulce - Paralelamente ao trabalho político, continuava trabalhando, até que me mudei para Bolonha, menina dos olhos do PCI, centro de difusão de todas as lutas contra o que era considerado reacionário. Encontrei o Prestes, novamente, e ele deu-me forças e razões para ir para lá. Comecei a viajar pela Itália e Europa, organizando e participando de feiras e aproveitando para fazer contactos políticos. Em menos de três anos fui trabalhar num órgão público e tive que me especializar em direito público, pois tinha que escrever as leis do setor ao qual fui designada e, depois de aprovadas, interpreta-las para os 380 municípios da região. Pouco a pouco me tornei uma expert em programação da distribuição de carburante. Era chamada para reuniões no Conselho dos Ministros para falar de petróleo e seus derivados. Participei da discussão e preparação das leis do setor desde 1979 até 2003.
Troppo - Apesar de não ser católica, a senhora realizou a primeira procissão do Círio em terras italianas. Por que tomou essa iniciativa?
Dulce - Estava organizando uma mostra sobre o trabalho de Landi, em Belém, que seria realizada durante o Festival Brasileiro de Bolonha. O local que conseguimos foi um salão enorme situado dentro da Basílica de S.Bartolomeu e S.Gaetano. Durante o evento acabei fazendo amizade com D. Stefano Ottani, cura da igreja. Falei das nossas tradições e do Círio também; resolvi preparar um material em italiano, contando a história do Círio, que ele não conhecia. Nessas alturas, tinha conseguido que um pintor italiano viesse a Belém dar aulas de aquarela e, quando voltou, levou consigo um presente para D. Ottani: era uma imagem de Nossa. Sra. de Nazaré. O padre se emocionou e daí nasceu a idéia de organizar um Círio em Bolonha no Festival Brasileiro. Ano retrasado inauguraram um altar para aquela santinha. Agora ela tem um lugar de honra na cidade que concentrou o maior numero de comunistas da Itália.
Troppo - Quando decidiu voltar ao Pará?
Dulce - Os exilados começaram a voltar em 1979 e eu tentei também fazer o mesmo. Morria de saudades e continuava a esperar uma brecha para voltar definitivamente. Depois de dez anos sem vir ao Brasil, decidi que era hora de tentar. Já estava separada de meu marido e minha filha tinha sete anos: nada mais me ligava àquela terra. Quando fui preparar o passaporte me deparei com a 'pátria podestá' e descobri que a filha que eu criava era do pai, ou seja, eu não tinha poderes sobre ela. Explicaram-me que, para a lei italiana, os filhos são dos pais, não das mães. Achei que era uma lei reacionária e retrograda, mas tive que aceitá-la. Cheguei ao Brasil e me informei sobre as possibilidades de trabalho. Veio a segunda decepção: tinha que começar do zero. Tudo o que tinha estudado não tinha valor aqui. Voltei para a Itália e fiquei lá até me aposentar em 2005.
Troppo - Como foi o reencontro com a terra natal?
Dulce - Depois de tanto tempo fora, trinta dos quais na cidade mais organizada da Itália, está sendo duro me acostumar. Para uma pessoa que passou muito tempo 'obrigando' os outros a respeitarem as leis, é duro ver o quanto todos as ignoram aqui. O Código de Trânsito, nem se fala; o Código de Posturas do Município, para mim, foi ab-rogado por falta de uso. Mas temos coisas boas também, principalmente a simpatia do nosso povo. Isso não tem confronto.
Troppo - Em relação ao passado, o que a senhora encontrou de bom e de ruim no Brasil, e mais especificamente no Pará?
Dulce - De bom, que quando saí tinha uma ditadura e agora não tem mais. O carimbó era relegado a ser tocado somente no Bosque Rodrigues Alves e talvez no (bairro) da Condor e agora entrou para os salões da alta sociedade. Notei que aumenta o número de pessoas interessadas a defender e divulgar a nossa cultura, e isso me deixa muito feliz, mas ainda há muito trabalho pela frente. Um deles é ajudar os autores das nossas músicas que, como Verequete, estão na miséria. De ruim, o nível do ensino baixou terrivelmente; a insegurança aumentou de forma inaudita, enquanto o número de policias ficou estagnado. Querem mais? Olhem as calçadas, que desastre; e quando chove, até os bairros nobres alagam. Cadê o nome das ruas? Como descobrir, guiando um carro, qual é a mão das estradas? E as crianças fora da escola? Chega!
Troppo - Quais sua atividades atuais em Belém?
Dulce - Faço trabalhos manuais tipo artesanato para ocupar o tempo livre que a Associação Cidade Velha-Cidade Viva, me deixa. Sou presidente da CiVViva e o meu maior trabalho nela é escrever cartas para os órgãos públicos pedindo o respeito às leis.